domingo, 18 de dezembro de 2011

Entrevista: “Ter uma mulher no poder não é necessariamente o que queremos”


Estudiosa canadense afirma que os avanços registrados na última década em relação aos direitos da mulher devem funcionar como motivação para que a luta continue

No Brasil para uma série de palestras na Universidade Federal de Goiás (UFG) em meados do 2º semestre de 2011, a professora e pesquisadora do Departamento de Estudos Políticos da Universidade de Winnipeg, Shannon Sampert, afirma que ao longo dos anos foi criado um estereótipo negativo em relação ao feminismo e que ainda há muito a serconquistado.

Nessa entrevista, Sampert, que também é jornalista e comentarista de rádios e canais de TV no Canadá, falou sobre aborto, mídia, política e disse que ter uma presidentemulher no Brasil não diminui a luta pela igualdade de direitos e nemrepresenta, necessariamente, um objetivo do movimento feminista.
Carlos Siqueira / Ascom-UFG
A sra já estuda o tema “feminismo e política” há bastante tempo. Na sua visão, atualmente as mulheres e ativistas estão um tanto quanto receosas em relação à identificação como feministas. Porquê?

Sim, e eu não acho que isto é algo novo, eu acredito que é um problema que vem de muito tempo atrás. Uma das razões para isso é que quando você utiliza o termo “feminista” existe sempre uma reação negativa. A resposta típica quando usamos o termo é de que nós odiamos os homens, somos lésbicas ou não temos senso de humor. Então, porque as mulheres vão querer se identificar com algo que é visto de modo negativo?

Esta é uma consciência criada pela mídia e pelo patriarcalismo para associar o feminismo como irregular, fora das normas sociais, contra a sociedade, ao invés de reconhecer que existe um movimento social que é importante e que luta pela igualdade de gênero.



A sra acredita que este tipo de estereótipo é uma construção apenas da mídia, ou é o reflexo do que a sociedade pensa a respeito do tema?

Não, eu acredito que a mídia exerce muito mais controle em relação a essa construção social. Eu acho inclusive que essa ideia é propagada e mantida pela sociedade patriarcal por intermédio da imprensa. Quando você tem a construção de certos estereótipos como o “ódio aos homens” ou o fato de que as mulheres envolvidas no feminismo precisam ser lésbicas, é porque isso está sempre e sempre na mídia, e acaba sendo tão repetido que em certo ponto se torna difícil resistir a estes estereótipos.

Mas por trás da mídia estão algumas ideologias e partidos. No caso do Canadá, especificamente, são os conservadores que estariam por trás de tudo isso?

Não, na verdade este argumento vigorou por algum tempo e nos Estados Unidos fala-se muito da influência da mídia liberal. No Canadá nós temos uma grande força de redes públicas sem fins lucrativos, como a CBC, em que tendências ideológicas são bastante neutras.Essas redes tendem a balancear suas coberturas. Mas é claro que as redes de televisão e os jornais do setor privado possuem o capitalismo como ideologia,então eles fazem tudo o que os anunciadores querem que eles façam.

No início do 2° semestre de 2011 a revista americana Newsweek publicou uma matéria a respeito das conquistas das mulheres nos últimos anos, inclusive com a presidente Dilma Rousseff na capa. Olhando para trás e analisando de um modo geral a primeira década do século XXI, a senhora acredita que as mulheres têm algo a comemorar em relação à conquista de seus direitos?

Eu acho que isso é parte do pensamento reacionário cujo raciocínio é “Olha, como vocês chegaram longe!”. No Canadá nós deveríamos estar felizes, porque alcançamos 25% de representatividade na Casados Comuns. Tudo bem, mas me desculpem, isso ainda não é 50%. Se nós mantivermos esse número, precisaremos de 167 anos até que tenhamos uma divisão verdadeiramente igualitária na Casa dos Comuns. Então, onde está o motivo para celebrar?

Dizer que chegamos longe o bastante faz parte dessa visão reacionária que prega que devemos parar de nos preocupar como tema, e que está tudo bem. Nós continuamos não ganhando tanto quanto oshomens, nós continuamos enfrentando uma série de dificuldades dentro das corporações por causa dos nossos filhos. Ficamos grávidas e as pessoas nãoquerem nos contratar e conseqüentemente nós nos tornamos prováveis trabalhadoras de apenas meio expediente ou então prestamos serviço mediante contratos. Sim, nós avançamos muito, mas não o suficiente.

A senhora acredita que essa consciência de que a mulher já conquistou o bastante acaba enfraquecendo o movimento feminista?

Sim, e esta é uma maneira de retirar do movimento feminista as mulheres mais jovens. Muitas jovens têm dito que não são vítimas, que não se identificam com o feminismo afirmando que este é um problema que foi enfrentado por suas mães. Elas também afirmam que não tem nada haver com isso e que estão bem e podem fazer o que quiserem.

Isso ocorre dentro das universidades?

Sim, e a minha resposta para as minhas alunas na universidade quando elas utilizam esse argumento é: tudo bem, tenham seus filhos dentro dos seus respectivos ambientes de trabalho, depois voltem aqui, e teremos uma conversa sobre feminismo e eu acredito que suas ideias terão mudado.

No ano passado, durante o processo eleitoral brasileiro, um dos temas de maior peso foi o aborto. O tema acabou exercendo certa influência em pesquisas e mobilizou setores religiosos da sociedade naquele período. Este tipo de impacto ocorre apenas no Brasil, ou é visto também em escala global?

Não, não é. No Canadá o primeiro-ministro Stephen Harper tem dito frequentemente que não colocará o assunto “aborto” para discussão. Harper tem uma orientação muito religiosa de direita, muito reacionária, e essa ala que ele representa está ficando cada vez mais desapontada porque ele não toma nenhuma medida contra o aborto.

No Canadá, aborto não é uma pratica legal e nem uma prática ilegal, no fim é uma terra de ninguém. Mas a mulher não pode ser presa se decidir pelo aborto. Entretanto, o acesso é a principal questão em relação ao tema. Na minha província, por exemplo, Manitoba, na região norte, se você é uma mulher, vive em uma reserva e está grávida, você precisa voar até Winnipeg, fazer o aborto, pagar as despesas em relação à estadia, e então voar de volta. Isso tem um custo muito alto, principalmentepara uma mulher que vive em um reserva.
Carlos Siqueira / Ascom-UFG
A Marcha das Vadias*, que começou em Toronto no início do ano acabou se tornando um movimento mundial, e recentemente Goiânia e também Brasília tiveram suas edições da marcha. Essa é uma maneira de mostrar que o movimento continua vivo?

Então, existem movimentos no Facebook contrários à Marcha e que insultam o movimento feminista, pregando que o mesmo deve ser banido. Esses grupos consideram a figura de Marc L épine*, um jovem que invadiu a Escola Politécnica de Montreal e assassinou feministas em 1989,como um herói. Então, nós temos a Marcha das Vadias de um lado e estes movimentos contrários do outro, enquanto damos um passo adiante, somos forçadas a retroceder novamente.

Há vários anos o Brasil aprovou uma lei estabelecendo uma cota de participação da mulher nas eleições. Apesar de ser uma lei, é muito difícil cumprir rigorosamente essa cota de 30%. Na sua visão,esta é a melhor maneira de inserir a mulher no cenário político, ou existem problemas maiores por trás deste tipo de lei?

Nós também enfrentamos essa mesma questão no Canadá, os partidos também falam a respeito de uma percentagem referente às candidaturas de mulheres. Mas a grande questão é que não tem como fazer com que essas mulheres se candidatem se elas, de fato, não quiserem. As mulheres não querem se candidatar porque a política não é um ambiente no qual elas são bem vindas.

As horas de trabalho também representam um entrave, se a mulher tem uma família, fica muito mais difícil de conciliar com os compromissos políticos. Outra questão é que fica difícil se candidatar quando não se tem dinheiro.

As mulheres não possuem apoio social que naturalmente os homens possuem, pois são vistas como menos prováveis a se tornarem profissionais e acabam por não ganhar o suficiente para custear uma campanha. Também ocorre que, caso insistam em preencher essas cotas, as mulheres atuem apenas para o cumprimento da legislação e, consequentemente, vão acabar perdendo as eleições. E então o argumento é, “Olha, colocamos 30% de mulheres lá, e elas continuam perdendo”.

Analisando a última eleição, foi importante para a luta feminista eleger uma mulher como presidente do Brasil?Como a sra avalia a ascensão de Dilma Rousseff?

É importante tê-la no poder, mas o problema é quando dizem: “Do que vocês estão reclamando? Vocês têm uma mulherna presidência!”. Bom, isso não é tudo o que queremos. Nós queremos, enquanto mulheres canadenses, brasileiras, e em todos os países, total igualdade de direitos. Então ter uma mulher no poder não é necessariamente o que queremos. E utilizar esse argumento de que já temos o bastante é uma tentativa de nos privar de outros direitos que ainda precisamos conquistar.

*Marcha das Vadias (SlutWalk) – refere-se ao movimento de protesto que surgiuem Toronto quando um policial afirmou durante uma palestra que as mulheresdeveriam evitar se vestirem como vagabundas (sluts) para não se tornarem alvosde estupro.

* Marc L épine – responsável pelo assassinato de 14 mulheres em 1989 na Escola Politécnica de Montreal. Ele utilizou como principal alegação para a chacina o fato de estar descontente com a presença feminina em ambientes que considerava “tradicionais”, e disse lutar contra o feminismo. Antes disso, Lépine teve sua admissão à Escola de Engenharia negada por duas vezes.

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